sexta-feira, 31 de maio de 2024

Chuva de papel – “a vida como ela é”

 


                                           

Por Lucana Bessa

Publicado em 2023 pela Companhia das Letras, Chuva de Papel, é o terceiro romance da escritora recifense Martha Batalha. O primeiro foi A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016) e, o segundo, Nunca houve um castelo (2018).

Misturando tons cômicos e trágicos, Chuva de Papel, traz um narrador em terceira pessoa (primeiro momento), que nos apresenta a história de um repórter policial, Joel Nascimento; uma dona de casa, Maria da Glória, e sua amiga Aracy, em um Rio de Janeiro, que viveu tempos áureos, mas que em 2020, apresenta-se completamente diferente, sobretudo quando foi acometido pela pandemia da COVID-19, que deixou miséria e mortos.

O livro encontra-se dividido em duas partes: na primeira (capítulos um ao quinze), o leitor conhece o repórter aposentado e decadente, Joel Nascimento, procurando o melhor local pelos bairros do Rio de Janeiro para praticar suicídio. A vida não faz sentido para esse homem solitário e endurecido pelo tempo. O único contato que tem com suas ex-companheiras (Beatriz e Mathilde) é por telefone, quando elas ligam para cobrá-lo por dinheiro, ou para reclamar da falta de atenção ao seu único filho, Marceu.

Atrelada à solidão de Joel, há o vício em álcool. Nossa personagem é filho de uma família desestruturada, com um pai abusador e vários casamentos fracassados, por isso, Joel saiu cedo de casa. Soma-se a tudo isso, o fato dele estar/sentir-se velho. A vida não foi fácil para Joel.

Jornalista aposentado, sem família e sem perspectiva de futuro, Joel, vê seus planos frustrados ao se jogar de um prédio, cair em cima de uma kombi e acordar no hospital com “a perna quebrada, dezoito pontos na testa e inúmeras escoriações”. Leandro, que durante anos dividiu com Joel o café frio das salas das redações dos jornais, é a única pessoa que lhe estende a mão e leva o amigo para morar de favor “num prédio de pastilhas amarelas e pilotis na Tijuca, no apartamento da tia dele”, Glória. A relação entre os dois é marcada pela ironia, humor, antipatia, troca de farpas, mas é isso que transforma a vida de ambos.

Glória é uma dessas mulheres invisibilizadas pela sociedade. Ao narrar sua vida para construção de um livro que deseja escrever, ficamos ciente de tudo o que ela não foi e não fez. Glória não realizou seus sonhos e ainda se tornou a típica chefe de família que sustentou a filha, Cláudia, com empadão: “Não fui aeromoça. Não fiz faculdade. Não viajei. Ano entrando e saindo, fiz empadão”.

Dessa relação, a princípio forçada entre ambos, começa a se desenvolver uma amizade, que é interrompida por uma queda de Glória, que a leva a morte. A partir desse ponto, inicia-se a segunda parte da obra (capítulos dezesseis ao trinta e quatro, alternando a 1ª e a 3ª pessoa), em pleno contexto de descaso com a saúde pública – COVID-19.

Nesse instante, Joel, que viveu “mais de meio século lidando com as histórias dos outros”, diz para si mesmo: “Vai ser impossível viver estes dias vazios dedicados somente a mim”.  Ele se lembra do caderno que a Glória escrevia dizendo ser o livro que seria em breve publicado. Começa a procurar. Após achá-lo, guarda-o, porque naquele instante ele se sente em sua melhor versão. Ler a história de Glória é para esse repórter arredio a possibilidade de dar à amiga um final feliz, ao menos na ficção que, quem sabe, escreverá. 

            Chuva de Papel (2023) é um romance-crônica com uma linguagem fluída, personagens machucados por acontecimentos individuais e coletivos, eivado de humor e ironia, que nos faz pensar em temas como a solidão, o companheirismo, a velhice, etc.



 

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